Vilarejo - Pedro J. Nunes

Adriana Pereira Campos

A novela Vilarejo, de Pedro Nunes, surpreende ao trabalhar com a ideia de um espaço onde o tempo parece desacelerado, mas o faz com uma escrita dinâmica e envolvente. Diferentemente de Érico Veríssimo em Clarissa, onde a narrativa quase convida o leitor a pausar e contemplar cada detalhe, Nunes imprime um ritmo fluido que não se detém longamente em descrições, mas também não cede à pressa narrativa.

Lembrando de Clarissa, um marco na literatura para muitos leitores – e especialmente para mim –, recordo como Veríssimo cria um universo delicado e sensível. A forma como ele descreve Porto Alegre e as emoções da jovem Clarissa envolvem o leitor em uma atmosfera onde os detalhes são quase táteis. Lendo-o nas tardes quentes de Cachoeiro, muitas vezes cochilei e sonhei com aquelas cenas. Sua escrita proporciona uma experiência de imersão profunda e contemplativa, quase hipnótica.

Já Pedro Nunes, em Vilarejo, prefere um caminho distinto. Seu texto não se detém em longas descrições, mas também não sacrifica a densidade emocional e atmosférica. A vila que ele retrata é construída com pinceladas rápidas, porém precisas. Há uma leveza que o autor mantém ao longo da narrativa, algo que lhe permite capturar o cotidiano desse vilarejo sem sobrecarregar o leitor com minúcias. Essa escolha faz de Vilarejo uma leitura ágil, sem que se perca a profundidade da experiência.

O contraste entre o tempo que se move devagar na vila e a narrativa que avança com equilíbrio é uma das grandes qualidades do livro. A vila, como em Veríssimo, torna-se mais do que um cenário: é um personagem vivo, que respira e pulsa nas entrelinhas. Entretanto, enquanto Veríssimo em Clarissa parece nos pedir para observar cada detalhe do ambiente e dos personagens, Nunes entrega essas informações de forma mais contida, deixando espaço para que o leitor as imagine e preencha com suas próprias percepções.

Sobre a narrativa de Pedro Nunes

A narrativa de Pedro Nunes é breve, com poucos personagens e contada em poucas páginas, características que justificam sua classificação como novela. Mas essa brevidade não implica superficialidade. Pelo contrário: trata-se de uma narrativa curta, mas densa, onde cada parágrafo é carregado de significado e estilo.

O narrador exibe juízos sobre o povo do vilarejo, criando personagens caricatos, pouco comuns, mas apresentados como se fossem figuras absolutamente ordinárias. Essa escolha estilística confere à obra um tom provocativo e, ao mesmo tempo, profundamente humano. A trama parte de uma descrição de cotidiano aparentemente banal, quase monótono, mas rapidamente ganha dinamismo, velocidade e impulso.

Os parágrafos crescem de forma quase absurda, como se o autor quisesse capturar toda a intensidade de sua narrativa em uma única respiração. A sensação é de que Pedro Nunes escreve arrancando o fôlego do leitor, recusando-se a pausar entre as linhas. Esse estilo é especialmente notável em frases como “o segredo dos Veiras é segredo” ou “o brilho que brilhava nos olhos do condutor”, que não apenas provocam reflexões, mas também revelam a habilidade do autor em transformar o simples em algo profundamente significativo.

Sobre a composição da escrita

O estilo de Pedro Nunes é ousado e peculiar. Ele abusa do uso de palavras antigas, algumas quase em desuso, que obrigam o leitor a recorrer à memória ou, por vezes, ao dicionário. Mas o diferencial de sua escrita está na forma como ele constrói suas frases. Nunes frequentemente subverte a ordem direta da língua portuguesa, com o predicado ocupando o lugar do sujeito e desafiando as expectativas do leitor.

Outro aspecto marcante são suas construções subordinadas. Ele abre uma frase com uma oração nominal e, em seguida, a conecta a orações subordinadas adjetivas, criando uma sequência complexa que exige atenção e cuidado. Para nós, historiadores, essas estruturas representam um território delicado: são construções que exigem parcimônia no uso para não comprometer a clareza. Mas Nunes, com destreza, utiliza essas inversões e subordinações para dar ritmo e musicalidade ao texto, sem perder o controle sobre a narrativa.

Além disso, Nunes abusa do pleonasmo de maneira sofisticada, desafiando o leitor a perceber as repetições que reforçam ideias ou imagens. Não é raro encontrar passagens como “os olhos brilhantes de um brilho incomum” ou “semelhante rapina com a semelhante rapina dos urubus”. Essas escolhas, que poderiam soar excessivas em outros contextos, ganham um toque de genialidade pela combinação de bom gosto e precisão. É como se o autor brincasse com as palavras, divertindo-se enquanto constrói imagens que surpreendem e encantam o leitor mais crítico.

Outro traço característico da escrita de Nunes é sua quase mania de antecipar o adjetivo ao substantivo. Em quase toda a narrativa, o autor posiciona as qualidades à frente dos elementos descritos, como se a essência das coisas e das pessoas fosse seu principal foco. Essa escolha estilística confere um tom reflexivo e poético à narrativa, convidando o leitor a olhar para os personagens e os cenários primeiro por suas características, antes de reconhecê-los como elementos concretos. É uma inversão sutil, mas poderosa, que dá à narrativa uma identidade marcante.

Conclusão

Vilarejo fascina não apenas pela habilidade de Pedro Nunes em dar ritmo à narrativa, mas também pela forma como ela salta do cotidiano para o fantástico. O autor conduz o leitor por um relato que, à primeira vista, parece uma crônica sobre a mesquinhez de habitantes de um vilarejo fictício, com seu cotidiano quase imóvel. Mas, abruptamente, a narrativa adquire contornos extraordinários, abrindo espaço para o absurdo.

O desfecho é surpreendente, ao menos para mim, pois em nenhuma passagem havia o menor sinal de que algo assim estava sendo preparado. Da crítica às limitações e mesquinharias que apequenam os moradores de um lugar com pouco dinamismo, Nunes transforma o vilarejo em um espaço mágico ou absurdamente estranho. Ao final da leitura, ninguém deixará de refletir sobre esse desfecho inesperado. O vilarejo deixa de ser uma vila ordinária para se transmutar em algo extraordinário, marcando o leitor de forma duradoura.

Assim como Clarissa marcou minha adolescência, Vilarejo é uma obra que demonstra como, em mãos habilidosas, o ordinário pode se transformar em algo inesquecível.

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