Menino

Marcela Guimarães Neves

O que há de mais precioso que a infância? Não é ela uma riqueza a ser protegida no cofre cerrado da memória? Existiria algo mais infame que a violação dessa fase tão pura da vida? Essas e outras indagações agitam a mente após a leitura do sublime romance Menino, de Pedro J. Nunes.

A cativante história do garoto do interior do Espírito Santo, mais precisamente do município de São José do Calçado, foi levada a público por meio do belíssimo projeto intitulado Nossolivro, organizado pelo jornal A Gazeta, no ano de 2012. O fato é que uma boa história, como um girassol que busca a luz solar, deve seguir em direção ao maior número possível de leitores. Logo, seja ela narrada de forma oral, como nos povos antigos, seja ela posta em livro físico, folhetim de jornal (a exemplo de tantas obras de grandes autores, como José de Alencar), ou plasmada em suporte eletrônico, como também é o caso do presente registro –  já disponibilizado na plataforma Kindle – uma bela fábula deve sempre ser contada.

Para a nossa sorte, as lembranças do menino calçadense foram contadas. As alegrias da tenra juventude, bem como os riscos que ela corre, tudo está em farta composição no mosaico de sensações reconstruído a partir das memórias do autor. No entanto, o escritor deixa clara a importância da ficção como verdadeira argamassa para a fixação do conteúdo da história – que, segundo ele, não representa um simples relato de recordações da infância (p. 6). Como evidencia o escritor Ralph Waldo Emerson, em trecho citado por Henry Miller, na introdução de sua obra Trópico de Câncer: “Estes romances cederão lugar, pouco a pouco, a diários ou autobiografias – livros cativantes, desde que um homem saiba escolher, entre o que chama de suas experiências, aquilo que é realmente sua experiência e saiba registrar verdadeiramente a verdade.” Sem dúvida, Pedro J. Nunes soube verdadeiramente registrar a sua verdade.

A descrição de um tempo suspenso por uma inocência bucólica nos traz à mente e ao coração sentimentos proustianos acerca da nossa própria infância. É impossível não recordar os encantos da meninice ao ler passagens como:
Além da cerca de bambu cresciam pés de melão-de-são caetano. O resto era susto. Do lado de baixo, terreno contíguo onde os meninos de minha idade ou um pouco mais velhos vinham esconder divertimentos inocentes ou colher forquilhas de setas, crescia o colonhão e a espeta. (p. 13)

E ainda:

Não havendo muito o que fazer nas noites intermináveis de verão, sentávamo-nos, meninos e meninas, num círculo irregular. Já ninguém tinha ânimo para a roda, amarelinha ou pique piculeta. Isto, no mais das vezes, dava ocasião a conversas desencontradas, tolas, despidas de qualquer interesse. Contudo, mesmo quem insistisse na belisca, logo largava de lado as cinco pedrinhas e vinha ajuntar-se ao grupo. Não demorava que a conversa descambasse para os contos de terror, para os casos de assombração. Uns falavam de reaparição dos mortos, exibiam argumentos inquestionáveis da manifestação do além, bichos medonhos, abantesmas impiedosas, seres muito poderosos. (p. 25)

Com efeito, tais assuntos e brincadeiras fizeram parte das conversas da criançada das gerações anteriores ao computador, Internet, Iphone e outros aparelhos contrários à imaginação juvenil.

Com a malícia de um Tom Sawyer e a indisciplina de Huckleberry Finn, célebres personagens do grandioso Mark Twain, o menino da nossa história se reconhece como um tanto dissimulado para lidar com a “convivência selvagem dos recreios e das saídas, em que sempre alguém apanhava, alguém batia, estabelecida a lei do olho por olho.” (p. 32) Quanto à insubordinação, os palavrões aprendidos, e ousadamente ditos, foram objeto de firmes reprimendas por parte de Dona Anna, a sua dedicada mãe.

E no que tange à família e aos amigos, o autor descortina a sua ascendência e as suas amizades de forma a mostrar a excentricidade e a originalidade dos personagens de seu relato, os quais, imediatamente, remetem-nos às divertidas histórias de Monteiro Lobato.

Ademais, o livro de Pedro J. Nunes nos transporta a outras reminiscências, essas mais íntimas, quando traz à baila, por exemplo, interesses de outra espécie que não as meras brincadeiras de amarelinha ou pique piculeta. A descoberta do desejo, esse bonde que nos leva a emoções profundas pelos trilhos da vida, é abordada pelo autor com as tintas da curiosidade e do encantamento. É de uma beleza singular, sobretudo pela precisão dos detalhes, a cena em que o menino escuta uma garota cantar embaixo do chuveiro e já imagina vendavais de emoções febris. (p.16)

No entanto, para além da delicadeza dos anseios pueris, o romance de Pedro J. Nunes também versa sobre a brutalidade do mundo dos adultos e da perversão da violência contra crianças naquela região. Neste ponto, o livro é um grande alerta, uma verdadeira denúncia contra a ferocidade com que se pode quebrar, para sempre, toda essa magia inocente do universo infantil.

Ao fim da leitura, após o contentamento de conhecermos um pouco mais da biografia deste brilhante escritor capixaba, despedimo-nos da obra com os questionamentos propostos no início desta resenha ressoando na mente como os sinos de John Donne. De fato, para todos os trágicos episódios de violência contra crianças, ainda aguardamos respostas, ou melhor, providências das autoridades para, enfim, encerrarmos de vez este sórdido capítulo da história do nosso país.

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