Entre a paixão e o amor, há a carne incompleta em si mesma por abrigar os instintos. A paixão de entrega física é a maior manifestação do desejo. Nela surge a ilusão de completude. É fato que duas peças de Lego, apesar de isoladas serem bem diferentes, se encaixem perfeitamente. Mas o brinquedo Lego não é feito de carne e, apesar de servirem de folguedo para as crianças, alegrando-as, não possuem alma. Há quem creia que a paz ocorre quando o espirito e o corpo se encontram, Fausto Wolff está entre os que creem nisso. Algo impossível de ocorrer quando o desejo soberano apõe sobre duas pessoas a ausência da realidade.
Carlos Drummond de Andrade, em seu livro O amor natural, nos põe à vista o amor sexual em sua plena espontaneidade, isto é, sem os condicionamentos sociais, sem a repressão. Estado de graça se eivado pela liberdade instintiva, raro até mesmo em relacionamentos longevos e bem-sucedidos, mas possível.
Oona O’Neil, em mil novecentos e quarenta e três, tinha dezoito anos quando se casou com Charles Chaplin, já ultrapassado da meia-idade. Foram felizes para sempre.
Augusto Richet, no romance A casa do poeta trágico, de Carlos Heitor Cony, conto de fadas de superação do interdito social, se apaixona por Mona, de dezessete anos, e convive com ela por bom tempo. O impacto da separação para Richet o obrigou a andar de cadeira de rodas; só Mona conseguindo levantá-lo.
Muitos autores referem o nome das suas amadas ou paixões, entre eles Goethe, em seu livro Fausto, quando Fausto, um velho, pede ao diabo que o transforme em jovem para poder amar, desastrosamente, Gretchen.
Com certeza, Lolita, de Vladimir Nabokov, é o mais famoso personagem de romance entre homens de meia-idade e jovem mulheres emergentes da puerícia.
Em seu livro Crônica do amor desperdiçado, o autor – Pedro J. Nunes – nos traz, como objeto da paixão de um professor de literatura de meia-idade, uma personagem adulta-jovem sem nome, sua aluna na escola onde leciona. E há uma “razão” para tanto: o ressentimento.
Não há como no romance de Cony, a superação do interdito social. O professor também não declina o seu nome. Seja por vergonha do acontecido, seja por não querer a circulação do nome próprio ou o da amante jovial, pois a vivência mútua foi entre paredes. Pois como dizer o nome de quem se odeia e odeia a mulher que lhe deu tanto prazer?
Há no livro a observação de um casal em congresso carnal, fornicando na rua, gemendo alto, acordando a vizinhança perturbada; enquanto o professor – observador – se deleita em elogios aos amantes urbanos, numa, sei do cacófato, manifestação pessoalíssima do desejo de mostrar ao mundo a sua paixão pela jovem com quem está transando.
Em contrapartida o casal de sem nomes nunca foi visto junto em passeio público, restritos, enquanto pares, ao amor clandestino ou ao instinto em estado “puro” sempre angustioso e em busca de alívio.
A prosa poética de J. Nunes, numa manifestação da vida acadêmica, nos traz um estudo sobre os amores de Dostoiévski, a mostrar a qualidade profissional e a cultura ampla do mestre de sala de aula, personagem sem nome, paralelamente à sua paixão inominada, protótipo da mulher que enlouquece um homem, como as teve o grande escritor russo, capaz de encontrar com o tempo mulher que lhe trouxe sossego e permitiu que escrevesse seus livros sem turbulências externas.
Embora haja paralelismos entre o russo e o professor de meia-idade, escritor, cético relativamente ao que possa escrever ou viver, talvez a colocar o descontentamento com a vida como leitmotiv da paixão sem freios em relação à “mulher amada”. Sim, o sexo aliviado ad libitum traz paz, suprime brevemente o desejo que retorna, retorna, retorna mais que o mar. Na criação do amor desperdiçado, vivido apenas lá no canto, onde as paredes se encontram, há um lugar sem teto solar!
O texto linear traduz o caminho mais curto para a saciedade do desejo, sem arabescos barrocos, mas com elevada prosa poética, como no episódio em que na última relação sexual ela levanta a saia até os rins, em vez de até os flancos – palavra tão lugar-comum e pouco polissêmica.
O vazio existencial é, mesmo para o mestre, o útero da paixão encontrado como claustro no relacionamento – membro e vulva – com a anônima. Quem lê vive mais vidas do que quem não lê, disse Umberto Eco, disse Mario Vargas Llosa, hábito que deveria, e muitas vezes consegue, influenciar e enriquecer o processo de ontogênese, tornando o processo muito mais lúcido. Mas esse não é o caso no livro.
Facultando, a leitura, ao indivíduo maior tempo de qualidade, maior saber, maior capacidade de bem-viver. Entrementes, Pedro Nava, pouco antes de cometer suicídio, em entrevista televisionada, perguntado se toda experiência vivida valia tanto ou algo, respondeu:
– A experiência não serve para nada!
Não seria o viver desconstrutivo da paixão de entrega física vividos pela mulher e o homem anônimos a ampla vivência das pulsões de morte? Não foram as pequenas mortes (alívios) cumulativas a construção do final trágico, em Crônica do amor desperdiçado! Calma, no livro, não cabe o fim “todo mundo morre no final”.
Crônica do amor desperdiçado é um livro sobre a ausência de realidade entre os amantes. Fuga da realidade muito mais perpetrada pelo professor do que pela mulher que ele não cita o nome, pela mulher que o fez esconder seu nome próprio.
No proibido filme “O último tango em Paris”, Paul, representado por Marlon Brando, só diz seu nome uma vez, a personagem feminina, interpretada por Maria Schneider, sequer diz o seu.
Em Crônica do amor desperdiçado não há diálogos sobre a vida lá fora, muito mais por parte do professor, mas há a necessidade de, ao menos, bordear a realidade, saber o mínimo do mínimo da vida não nomeada, abrir uma fresta de porta, acender a luz para a surpresa dos olhos.
Não se tem os melhores prazeres da vida com os pés no chão, mas é impossível levitar no mar sem pôr os pés na areia em algum momento. Santo Agostinho, citado de memória, no seu livro confissões; escreve:
{...} como foi difícil se afastar das tentações do vestido vermelho da carne {...}.
O personagem do romance-crônica de J. Nunes, de forma diversa de Agostinho, que conseguiu se afastar do vestido levantado via sublimação espiritual, não se afasta da carne, as derrelições da vida não foram suficientes para tanto. O verso-musical de Caetano veloso “a gente não sabe muito bem onde colocar o desejo” é, sem dúvida, o que mais demonstra o modo operandi do literato fracassado.
O conhecimento não lhe abriu os olhos. A experiência não serviu à nada; aliás, não há relato da vida amorosa pregressa do escritor. Mas da dela há insinuações, como o vínculo com outras pessoas, há a casa onde termina o romance deles, há a proposta de custo do que se viveu em comum, secretamente.
O instante físsil do último gozo é o da separação total das peças de Lego, naquela hora ela mostra ao que veio: pessoa com necessidades materiais, sonsa, capaz de dar uma chave de perna naquele homem vazio, pretendente a dar um significado amoroso ao caso.
Como escreveu Tristão de Athaíde, o ódio é a ausência do amor!
Para muitos o amor sexual individualizado é o caminho encontrado. “Amar se aprende amando” – ensinou em verso Carlos Drummond de Andrade. Romance sobre o desamor, o livro em tela, freneticamente, exibe o nadar contra a corrente. O pensamento e o amor são dois gigantes da alma; postos na disjuntiva há o desconchavo do corpo e da alma. Mas o desejo consegue ser soberano ao incidir como paixão.
Livros nos ensinam a como viver e a como não viver! Somente a literatura consegue trazer os dramas da vida de forma esmiuçada e plena. Pedro J. Nunes, autor do belo livro Crônica do amor desperdiçado, nos traz uma história sobre a desventura desdobrada em desventura. A inspiração do livro veio da vida real, de conversas com um pool de amigos.
Vale a pena conferir!