Na livraria: diversa caligrafia

.:. diversos gêneros .:.

Formar, 2015
250 páginas, 21cm

 

 

Na livraria: diversa caligrafia

Rita de Cássia Maia e Silva Costa

O que fazer, numa tarde chuvosa e sem graça, para despistar o tédio que se avizinha e a dor causada por um pé quebrado? Disponho agora de todo o tempo do mundo. Busco na memória a companhia de tantas vozes contidas em páginas e páginas nas estantes de minha pequena biblioteca. Uma vez mais aquelas personagens despertam e aguardam, silentes, à espreita do prometido encontro. Ler certamente faz curar as dores da alma. Termino de ler Na Livraria – diversa caligrafia, livro de contos, crônicas e encontros, a ser lançado neste sábado, dia 13 de junho, na livraria Logos do Cine Jardins. Prevalece uma vontade enorme de bisbilhotar o que fazem e o que dizem esses distintos senhores que se reúnem nas manhãs de sábado na Logos, a já conhecida e prestigiosa livraria de nossa capital. Sinto-me legitimada nesse desejo de bisbilhotar. A curiosidade faz parte das pulsões eróticas capazes de mover o mundo, no bendizer de Freud.

O Sabalogos completa 25 anos! Correta, justa, merecida homenagem no jubileu de prata desse já clássico e democrático encontro de escritores e amigos - todos amantes de literatura - com a edição de Na Livraria – diversa caligrafia. A exemplo do que já ocorrera antes com Mulheres – diversa caligrafia, essa obra comemorativa foi capitaneada pelo escritor Pedro J. Nunes e teve a colaboração de Caco Appel no cuidadoso trabalho editorial. O selo é da própria Logos Livraria/Editora Formar.

De que falam, afinal, os autores desses contos e crônicas e outros textos que tais? O que nos contam de sua vasta e eclética experiência com a literatura? Ora direis, falam de livros e de literatura, desse universo borgeano da biblioteca infinita que constitui a experiência de leituras e de vida compartilhada ali entre amigos. Guardam esses textos as influências várias de autores e obras da literatura clássica com as quais se vê plasmada sua formação estética e literária, obras canônicas no melhor estilo da cultura humanística a que se refere Harold Bloom. Mas há outros, muitos outros nomes representativos de descobertas pessoais com as quais se alargam as histórias de leituras desses escritores. Há na escrita da turma de amigos do Sabalogos a radiografia dos leitores que são.

Na Livraria – diversa caligrafia apresenta tal unidade semântica que faz o leitor suspeitar da capacidade inventiva nas sucessivas histórias que giram em torno de livros e autores, de páginas, edições e traduções, de estantes, livrarias e bibliotecas, de personagens, verdades e ficções, de histórias, reais ou imaginárias, de leitores e de literatura, enfim. Olhos e mãos perspicazes passeiam por volumes, lombadas, títulos e mais títulos de livros nas prateleiras da livraria e da imaginação. Mas se há um certo vigor nessa unidade, há, por outro lado, no estilo que cada um imprime à sua escrita sua riqueza e sua diversidade.

Com que graça, leveza e, não raras vezes, senso de humor esses autores de múltiplos estilos falam de si e de seu amor aos livros! Renato Pacheco, Miguel Depes Tallon e João Bonino estão mais vivos que nunca, imortalizados não apenas por sua própria literatura ali ilustrada como pelas histórias e lembranças trazidas de anos de convivência amistosa e alegre. O poeta Miguel Marvilla também não foi esquecido. Tampouco o foram o cronista Carlinhos Oliveira, o professor Ivantir Borgo e Jorge Rangel, atencioso e dedicado gerente da nossa livraria. “Obra aberta”, como bem assinalou Sérgio Bichara em sua personalíssima versão, que contempla não só a primeira formação do Sabalogos como se estende nas minúcias da segunda e definitiva formação, sem nada deixar de fora, inclusive a matéria especial estampada na primeira página do Caderno 2 de A Gazeta.

Expressão da mais genuína produção literária do Espírito Santo, esta obra apresenta ao leitor histórias e mais histórias de livrarias e bibliotecas, além de tudo aquilo a que lhes é mister concernir: casos curiosos de anexos, presentes e encantamentos; piadas e brincadeiras; histórias divertidas de fantasmas e personagens, fictícios e não fictícios; lembranças; metáforas; ficções, boas ficções com sugestões de livros, muitos livros, livros a mancheias... Não caberia, nos limites deste espaço, elencar nomes e méritos. Destaco, porém, por pura identificação e conveniência estilística, as predileções literárias – Joyce, Machado, Borges, Dostoievski, Balzac, Steinbeck, Cervantes e Eça de Queirós – e a concisão e elegância de alguns que, por refinado gosto estético e finura de espírito, já estão inscritos no panteão literário capixaba. É o caso de Francisco Grijó, Ivan Borgo, Pedro J. Nunes e os conhecidos dois irmãos: Luiz Guilherme e Reinaldo Santos Neves.

Luiz Guilherme Santos Neves rastreia minuciosamente todas as papelarias e livrarias de Vitória desde meados do século passado e, como Renato, faz o devido destaque para a Livraria Âncora, onde tudo começou com as famosas palestras e sabatinas realizadas nas manhãs de sábado. Levando muito a sério seu ofício e dando o tom desse projeto, assim ele define: Na Livraria – diversa caligrafia é “livro sobre livrarias de Vitória, escrito muito a sério e um pouco à brinca” (p.87).

Os contos de Pedro - Pedrinho para os amigos do Sabalogos - encantam pela sutileza – traço de sua literatura - na construção das narrativas e pela sofisticada sedução ao apresentar ao leitor suas mulheres de “papel e éter” e sua paixão por livros e histórias, bibliotecas e livrarias.

Imaginando-se as boas e largas risadas de Ivan Borgo, encontra-se, na generosa paixão pelos livros, além de lirismo e erudição, a crença de que a literatura tira dos acontecimentos “brechas para o exercício da esperança e da beleza” (p.111).

Reinaldo Santos Neves nos presenteia com um breve porém marcante estudo sobre um leitor. Um ávido, como ele mesmo diz, e seletivo leitor, que ele próprio desconhece e a quem presta justíssimo tributo. Os livros raros da biblioteca de Jaime Rodrigues merecem, de fato, a atenção e a acuidade do olhar desse escritor que identifica nesse outro exigente e refinado leitor o cultivo do espírito que justifica o viver.

Mas o que dizer da “Mensagem de Renato Pacheco no Além para o Sabalogos do Aquém”, trazida pela lúdica e irreverente participação de Fernando Achiamé nessa empreitada? Não se sabe bem se da imaginação de Fernando surge a escrita reveladora da alma de Renato ou se se lê Fernando num texto de Renato. Não se sabe ao certo quem é quem: se na escrita de um se revela a alma de outro, em comunhão anímica e literária, modelada pela inconfundível amizade. Plena de saudade. Como lembra Fernando, para Santo Agostinho “no céu o tempo não existe” (p.138). Gentleman, Fernando (ou seria Renato?) coloca em cena, um a um, todos aqueles que, por sua atividade intelectual e literária, integram a chamada literatura do Espírito Santo. Ele não se esquece de ninguém: poetas e escritores estão todos lá convidados para o encontro.

É sobre o destino dessa literatura que indaga Getúlio Pereira Neves. Com sugestivas analogias e criatividade, o jurista e pesquisador empresta talento ao jovem contista e escritor para brincar com os mistérios dessa literatura refém de suas fronteiras. E talento é o que não falta até mesmo a quem acaba de chegar: Herbert Farias também faz literatura de primeira. Com sua metáfora da imperfeição humana, ele surpreende o leitor, confiando-lhe essa importante verdade: o livro sabe de tudo, conta tudo.

A entrevista de Linda Kogure a Sílvio Dante Folli, um dos donos da Livraria Logos – seu sócio é Francisco Olsen -, encerra o livro, com toque de articulista convidada, com o carinhoso depoimento desse incentivador notável que, com gentileza, “abre as portas para o escritor”, como ele mesmo diz. Porque sabe que a fértil criação literária desses escritores que aqui nasceram ou aqui decidiram viver se engrandece justamente por sua diversa caligrafia.

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