Poesia

Pedro J. Nunes

Para quem leu a retrospectiva do ano literário de 1993 (Você nº 19), já não é surpresa que Pedro J. Nunes, o autor da novela Vilarejo, também de vez em quando se mete a poeta: naquela matéria se elogiou muito a sextina que Pedro publicou na revista Contexto. Para mostrar que Pedro poeta não é monopólio da Contexto, estamos publicando três sonetos seus, com ricas imagens insólitas e uma surpresa na esquina de cada frase, e que provam que Pedro gosta mesmo é de formas fixas.

Velhos? Brincadeira. Estes sonetos são das coisas mais pra frente que se têm visto ultimamente na poesia da província.

Revista Você

Sonetos

I

A boca toma da noite uma sombra
lunar, desdenha de mim, boquiaberta
fúria. Ainda há pouco, em tarde zonza,
o lençol azul: braços, bocas, pernas,

o corpo feito de grutas, de montes,
de inesperados abismos. Janelas
misteriosas, os olhos de bronze
embalam os quereres e a quimera

usurpa-me a matemática dor
de existir. Junto na palma da mão,
em tom de dúvida, feixes de cor

e me desfaço, desmontado em branco
e preto. Dócil e saciado potro
ganho, na trégua, a errante manhã.

II

Dorme: enquanto eu me desfaço em fúria
os desvãos de mim tropeçam no éter
do setembro insone. Não é o cúmulo
que, entregue aos sonhos, este severo

vulcão assim a olhe, de faminta
retina? A manhã me espera em dó
menor — que as vísceras não desmintam
a loba. Não me refaço do pó

olhando daqui seus misteriosos
cálices: o vinho ganha a noção
do ácido. O cavalo em mim a postos

parte a trote noite adentro. São
as evoluções de vagas magnólias
a mais cruel certeza do porão.

III

O meu corpo é ausente do seu corpo,
meu amor: a noite apenas começa
e não é senão o anúncio da dor,
essa dor do furioso cio, etérea

dor. A noite não engana do amor
a fúria mal contornada, a eterna
angústia dos que debruçam famélicos
sobre o éter o desejo e o vapor

da nave que flutuou em azuis.
Da sorvência das horas vãs palavras
nada podem. É tudo furta-luz.

O amor prescinde de lavrar a pá
o perfeito verbo: tudo conclui
que o amor é um vento apaziguado.

Estes poemas foram publicados na revista Você, da Secretaria de Produção e Difusão Cultural da Ufes, 1993.

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